Os Limites Jurídicos do Direito de Propriedade
- Tiago Andrade
- 7 de set. de 2022
- 6 min de leitura

O Código Civil não define um conceito sobre propriedade, optando por apresentar os poderes inerentes ao proprietário em seu art. 1228:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
Sobre a conceituação da propriedade discorre Carlos Roberto Gonçalves (Gonçalves, Carlos Roberto Direito civil 2 : esquematizado : contratos em espécie, direito das coisas – 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018):
Trata-se do mais completo dos direitos subjetivos, a matriz dos direitos reais e o núcleo do direito das coisas. A organização jurídica da propriedade varia de país a país, evoluindo desde a Antiguidade aos tempos modernos. Por essa razão, difícil e árdua se mostra a tarefa de conceituá-la.
Para Flávio Tartuce “pode-se definir a propriedade como o direito que alguém possui em relação a um bem determinado. Trata-se de um direito fundamental, protegido no art. 5.º, inc. XXII, da Constituição Federal, mas que deve sempre atender a uma função social, em prol de toda a coletividade. A propriedade é preenchida a partir dos atributos que constam do Código Civil de 2002 (art. 1.228), sem perder de vista outros direitos, sobretudo aqueles com substrato constitucional” (Manual de Direito Civil: volume único / Flávio Tartuce. – 12. ed. – Rio de Janeiro, Forense; METODO, 2022.).
Desta forma, a propriedade é definida pela legislação civil partindo dos atributos de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto.
No momento em que a Constituição de 1988 recepciona no rol de direitos fundamentais a propriedade, é possível visualizar que houve mudanças substanciais no sistema do direito civil clássico, pois a propriedade deixou de ser vista como um direito individual de característica absoluta, passando a ser um direito vinculado a uma função social.
Por conseguinte, houve a fixação de novos parâmetros no momento em que é feita a releitura do direito absoluto a propriedade sob a luz da Constituição, que privilegiou interesses da coletividade frente a individualização de interesses do cidadão. Assim, o direito privado abandonou o prisma da vontade individual, erigindo valores não patrimoniais, em especial a dignidade da pessoa humana, personalidade e os direitos sociais como critérios orientadores dos direitos privados.
Nessa toada, a relativização da propriedade já foi reconhecida em precedentes do Superior Tribunal de Justiça:
ADMINISTRATIVO. INDENIZAÇAO POR DESAPROPRIAÇAO INDIRETA. CRIAÇAO DO PARQUE NACIONAL DE JERICOACOARA. POSSIBILIDADE DE EXPLORAÇAO ECONÔMICA DO IMÓVEL EM ATIVIDADES DE TURISMO ECOLÓGICO. DIREITO DE PROPRIEDADE NAO AFETADO EM CARÁTER SUBSTANCIAL. CONFIGURAÇAO DE LIMITAÇAO ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DE DIREITO À INDENIZAÇAO POR DESAPROPRIAÇAO INDIRETA. REFORMA DA SENTENÇA. 1. Remessa oficial e apelações interpostas em face de sentença que julgou parcialmente procedente o pedido para condenar a União no pagamento e indenização - R$ 6.406.729,58 - pela desapropriação indireta do imóvel denominado Córrego do Urubu, verificada em decorrência da criação do Parque Nacional de Jericoacoara, que abrange a área do bem. Ficou estabelecido também que deverão incidir, sobre os valores indenizatórios juros compensatórios e juros moratórios. Os honorarias de sucumbência, por sua vez, foram arbitrados no equivalente a 0,5% (meio por cento) sobre o valor da condenação. 2. O direito de propriedade, previsto no art. 5º, XXII, da Constituição Federal, não é absoluto, podendo vir a sofrer restrições através da intervenção do Poder Público. 3. A desapropriação se funda na tutela do Estado pelo interesse público, havendo o despojamento da propriedade particular pelo Poder Público, mediante indenização, por utilidade pública ou por interesse social. Por sua vez, a limitação administrativa, apesar de também se lastrear no interesse público, deriva do exercício do poder de polícia, através do qual ha restrição apenas ao uso da propriedade, impondo-se a todos os proprietários genericamente e sem qualquer ônus - dever de indenizar - para a Administração. [...] Isto posto, com fundamento no art. 557, caput, do Código de Processo Civil, NEGO SEGUIMENTO ao Recurso Especial. Publique-se e intimem-se. Brasília (DF), 29 de agosto de 2018. MINISTRA REGINA HELENA COSTA Relatora (STJ - REsp: 1440307 CE 2014/0050366-2, Relator: Ministra REGINA HELENA COSTA, Data de Publicação: DJ 03/09/2018).
Desse modo, devemos reconhecer que a propriedade não ostenta, na atual conjuntura do ordenamento jurídico, a natureza absoluta, por via de consequência, necessário se faz reconhecer e identificar as limitações ao exercício dos atributos constantes no art. 1228 do Código Civil.
Algumas limitações são facilmente identificadas no texto constitucional, mais precisamente no art. 5º, XXII e XXIII, da CF/88:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
Forçoso reconhecer que a propriedade é limitada pela sua função social, reconhecida na legislação civilista no parágrafo primeiro do art. 1228:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1 o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
Ademais, o supracitado parágrafo evidencia que o exercício dos poderes previstos no caput do artigo deverá obedecer a função social e a função socioambiental da propriedade, estipulando que tais deveres atuam como principais limitadores da propriedade.
Flávio Tartuce (2022, Tartuce). citando o Professor da USP Carlos Alberto Dabus discorre sobre a transformação da anterior noção absolutista do direito:
Assim, como observa o Professor Titular da USP Carlos Alberto Dabus Maluf, “ao antigo absolutismo do direito, consubstanciado no famoso jus utendi et abutendi, contrapõe-se, hoje, a socialização progressiva da propriedade – orientando-se pelo critério da utilidade social para maior e mais ampla proteção aos interesses e às necessidades comuns”(apud, 2011, MALUF, p.73-74).
Em seguida fundamenta a indissociável limitação da função social com o conceito de propriedade (2022, Tartuce).:
Na esteira dessas lições, é possível dizer que a função social pode se confundir com o próprio conceito de propriedade, diante de um caráter inafastável de acompanhamento, na linha do preconizado por Duguit. Assim, a propriedade deve sempre atender aos interesses sociais, ao que almeja o bem comum, evidenciando-se uma destinação positiva que deve ser dada à coisa. Partilhando dessa forma de pensar, enunciado aprovado na V Jornada de Direito Civil, promovida em 2011, com a seguinte redação a respeito da propriedade rural: “na aplicação do princípio da função social da propriedade imobiliária rural, deve ser observada a cláusula aberta do § 1.º do art. 1.228 do Código Civil, que, em consonância com o disposto no art. 5.º, inciso XXIII da Constituição de 1988, permite melhor objetivar a funcionalização mediante critérios de valoração centrados na primazia do trabalho” (Enunciado n. 507).
Com esteio na função social, a CF/1988 permite a expropriação de imóvel sem qualquer indenização ao proprietário nas hipóteses de destinação para culturas ilegais ou exploração de trabalho escravo, demonstrando que não é possível conceber a exercício da propriedade em manifesta violação ao direito positivado:
Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.
Além disso, é possível identificar diversos comandos normativos e institutos jurídicos reconhecendo a limitação da propriedade, a exemplo do Código Florestal, Estatuto da Terra, Multipropriedade, REURB-S, Direito Real de Laje, etc.
Também, em recente julgado o TJSP, declarando a desobediência da função social por parte do proprietário, converteu ação de reintegração de posse em ação de indenização por desapropriação indireta, nos autos da Apelação Cível n. 1005900-93.2014.8.26.0506 de relatoria do e. Desembargador Roberto Mac Cracken, julgado em 16 de agosto de 2021:
Todavia, não obstante o pagamento de imposto e a limpeza da área, os autores não edificaram no imóvel, nem o destinou para a agricultura ou criação de animais. Os autores aduzem que não obtiveram autorização do ente público para a execução de obras de infraestrutura (fls. 03). Como destacado na r. sentença recorrida, “Por tantos anos só houve o imóvel em si, sem qualquer edificação/plantação/rebanho/roça ou qualquer outro uso” (fls. 2.406).
Nesse contexto, com o devido respeito, vislumbra-se relativa desídia dos autores no cumprimento da função social da propriedade, considerando inclusive que o registro imobiliário data de 1952 (fls. 236), com retificação em 2004 (fls. 237), sendo que o pedido mais recente para realização de obras de infraestrutura data de 2011 (fls. 405/409), como precisamente ressaltado na r. sentença recorrida.
À vista do exposto, deve-se reconhecer a imposição de limites à propriedade e o movimento de transição do ordenamento jurídico, que gradativamente abandona a visão patrimonialista individual dos direitos privados, reconhecendo sua relativização e constitucionalização, impondo aos titulares o dever de cumprimento dos atributos da propriedade em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais.